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quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Leia com os olhos fechados III

Era uma tarde fria, sem vento e, o dia, na hora da Ave Maria, se encaminhava pro encerramento. Era bonito de ver a passarinhada se recolhendo aos ninhos, a vacaria se deslocando pro galpão e a fumaça do fogão à lenha decorando os caibros da cozinha.
Tia Maria falou que hoje tem traíra frita pra janta e que se a gente demorasse para colocar os porcos na encerra, perderia a conversa em volta do fogo de chão. Nos apressamos na função e rogamos praga pra leitoada desgarrada que nos fazia perder tempo e caminhar em dobro. Só podia ser coisa daqueles guaxos!
Mais tarde, já na volta do fogo, fazíamos planos pro baile, logo mais a noite, na Estância do Pirapó. A festa, regada a café preto, lingüiça aferventada e pão dágua é a mais concorrida do lugar e, por isso, o ritual de preparação não podia ser desprezado. Tive que pegar a kodak pra retratear a cena: os homens se preocupando com o aparamento da barba, com o a água velva salpicada no rosto, com o engraxamento das botas e com a eliminação do cheiro de naftalina nas bombachas. Cada qual com um corte de cabelo diferente, uns encobertos pelos chapéus e boinas, outros sem nada, pra deixar as melenas bem a mostra.
Já com as mulheres, a coisa era diferente: ninguém podia esquecer o perfume “Amor Gaúcho”, o talco “Lavanda” e, na hora do banho, o bom e velho sabonete “Cashmere Bouquet” fazia a diferença. O somatório dos cheiros destes produtos apresentava ar de singularidade ao ambiente, ninguém ficava imune ao resultado aromático destas essências e quando a mulherada se reunia em bando pra ir ao banheiro, o poderiu aromatizante aumentava tanto que dava pra derrubar um boi. Mas a preocupação das senhoras não se resumia aos cheiros. A vestimenta exigia cuidados extras, o vestido de chita tinha que estar alinhado, a anágua não podia aparecer e as meias tinham que combinar com o laço do cabelo, que, aliás, tinha que estar bem rebocado de laquê pra não ariscar escabelar durante as danças.
E o salão de baile era outra tela, nem Salvador Dali [1] arriscaria tal desenho. No lado de fora, os cavalos, soltos ou atrelados a alguma carroça, esperavam pacientemente o final do bochincho. Lá dentro, os quadros com paisagens rurais, pintados pelo próprio dono do salão, misturados às imagens dos santos e alguns objetos pitorescos como uma canga de boi, criavam uma curiosa estética as paredes de costaneiras. Volta e meia, os organizadores do entrevero cruzavam o salão correndo com panelas e bandejas, espalhando farelos e pequenos pedaços de lingüiça pela pista de dança, o que ajudava os bailarinos a deslizarem de uma ponta a outra da sala. Os músicos, dos conjuntos de luxo da redondeza, já eram de casa dos bailantes, tanto que podiam parar de tocar que todos seguiam dançando no mesmo ritmo. Um amigo mais apegado às sabedorias, disse que isso se chama simbiose musical. A primeira vista achei isso estranho, mas, mais tarde, quando todos voltavam pra suas casas, com ar de satisfação e felicidade, entendi o que ele quis dizer: na verdade todos somos tocados, somos todos instrumentos deste grande poesia universal que apelidamos de vida.

Claiton Manfro

[1] Salvador Dali: foi um importante pintor Catalão, conhecido pelo seu trabalho surrealista. O trabalho de Dali chama atenção pela incrível combinação de imagens bizarras, oníricas e com excelente qualidade plástica.

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